segunda-feira, 15 de março de 2010

Onde os cães latem...

Sou um homem sério, mas não carrancudo, claro que eu sei me divertir, meus amigos que o digam. Mas sempre perco as estribeiras quando passo naquela rua, sempre aquela mesma rua, mal iluminada, cheirando a chuva e às sensações da minha infância. Lá, onde deveria ser o local paradisiaco onde recordar a vida, onde levar os amigos para sentir as mesmas sensações de estar de volta aos momentos felizes, é lá que tudo é estragado, arruina-se o encanto, se perde a graça, e tudo por causa dele... o maldito cachorro.

A rua cheira com aquele mesmo cheiro das guloseimas da Tia Gertrudes, a velhinha de corpo encarquilhado e mãos de fada, trabalhara anos com nossa familia, trazia sempre o mesmo sorriso, bonito e simpático, ainda que faltando alguns dentes, o mesmo olhar que sondava o intimo dos corações e descobria todas as minhas traquinagens de moleque. Eu quase sentia seu perfume, se me esforçava poderia conseguir, mas nunca conseguia, quando o doce cheiro de alfazema estava quase penetrando minha alma saudosista,  o maldito cachorro latia , meu perto apertava, os olhos arregalavam, um frio, qual sopro de morte me gelava a espinha, ia para casa com medo e praguejando o famigerado cão destruidor de minhas nostagias.

A rua é iluminada com a mesma iluminação do meu quarto de outrora, o berço dos acalentos de minha mãe, dos jogos com os velhos-novos amigos, hoje já doentes, ou mortos. O quarto onde floresceu o amor, onde iam as primeiras namoradinhas tão inocentes quanto eu. Eu poderia sentir seus cabelos, seu corpo de novo, mas, quando aquelas presenças vinham visitar-me o coração, inebriado pela doce ilusão do passado, o danado do cão latia... os corpos belos corriam, fugiam do meu olhar, para dar lugar à mais sufocante sensação de estar encarrulado.

Um dia, pensava eu, ainda destruo esse animal, era o sonho das minhas noites... parei de caminhar por aquela rua por uns tempos, até o dia em que enchi-me de coragem, trouxe comigo todos os amuletos possiveis contra cães, gatos, feras, mitos e visagens da noite... passava enfim por minha rua de lembranças, sentia os cabelos do tempo passar por mim e a leve garoa da saudade invadir o coração. Quando estava absorto por aquele clima de felicidade, o cão danado latiu mais uma vez, mas dessa vez não fugi, ao contrário, saí ao encontro do uivo perturbador. Qual não foi minha surpresa ao chegar no lugar onde os ruivos eram mais fortes, armei-me de coragem contra a sombra que lançava seus gritos no ar e, ao lançar-me contra ele percebi que não havia cão algum, quem latia era eu.


* Quando passeamos pelos caminhos da lembrança corremos o risco de querer esquecer muitas coisas ruins, nossos cães interiores começam a uivar, para não encontrarmos com nosso eu, com aquilo que nos causa dor. Mas, armando-se de coragem e aceitando a si mesmo, podemos voltar a caminhar pela rua da nossa vida interior.


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